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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Estudo comparativo entre as obras BUDAPESTE e PIERRE MENARD, O AUTOR DE QUIXOTE

BUDAPESTE E PIERRE MENARD, O AUTOR DE QUIXOTE
por Almecilia Dantas
Antonio Carlos Araújo da Silva
Andrea Rosa
Gislene Rose
Cecilia Navegante
Introdução
Este trabalho tem por objetos de estudo o romance “Budapeste” de Chico Buarque de Holanda, e o Conto “Pierre Menard, autor do Quixote” de Luis Borges. Objetiva-se com esta pesquisa fazer um estudo comparativo entre as personagens das duas obras, enfocando a temática do duplo. Para tanto se fez necessário fazer pesquisas bibliográficas de críticos literários como Antônio Cândido, Tania Franco Carvalhal e outros. Além de artigos científicos que corroboraram com essa pesquisa. A relevância desse estudo consiste em demonstrar de forma precisa e coesa as duplicidades das personagens que analisaremos, tentando transpor da ficção para a realidade.
Ambas as obras a serem analisadas representam muito bem a Literatura Contemporânea, pois encontramos a quebra da linearidade, o surgimento da estrutura caótica, fragmentada e ambígua, e a quebra da lógica racional e do individual. Estes aspectos nos dão a noção de como o romance Budapeste consegue abarcar a temática do duplo, dentro dos parâmetros da singularidade e duplicidades de cada personagem. Portanto, nosso trabalho, visa a partir da obra Budapeste estabelecer contato maior com o Conto “Pierre Menard, o autor de Quixote”, salientando a temática do duplo, buscando através das personagens elencar fragmentos que ratifiquem a duplicidade recorrente na obra.
O termo duplo.
A consagração do termo duplo deu-se através da estética romântica, sobretudo a alemã. Cunhado pelo escritor Jean-Paul Richter pela expressão Doppelgänger, traduzido por “duplo”, que literalmente quer dizer “segundo eu” ou “aquele que caminha do lado”. Essa idéia de “segundo eu”, possibilitou aos românticos a fuga da realidade, da história da sociedade. É interessante salientar que essa fugacidade perpassa pelo campo da psicanálise, pois é através do inconsciente, dos sonhos, das fantasias que reside o “outro eu” do homem romântico. Existem várias formas de contemplar a concepção de duplo, através de imagem especular, da sombra, do retrato, de um sósio, dos gêmeos e outra gama de elementos que remetem para a questão da duplicidade. E alguns destes elementos estão presentes nas obras de Buarque e Borges convergindo para um fenômeno que se liga diretamente às dicotomias do ser humano, no que se refere à subjetividade de cada um.
Apesar de o termo duplo ter consagração a partir da estética do Romantismo, este recurso vem sendo trabalhado em escrituras desde os tempos bastante remotos, como a Bíblia Sagrada, sobretudo nos livros de Gênesis e de I e II Coríntios: “Também disse Deus: façamos o homem a nossa imagem, conforme a nossa semelhança (...)” (Gênesis 1: 26)
Esta passagem do livro de Gênesis deixa perfeitamente clara a questão da imagem refletida, dando-nos a nítida impressão que Deus passaria ao Homem a sua imagem e semelhança, isto é, o Homem passaria a ser o duplo do próprio Deus.
E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito. (II Coríntios 3:18)
Existe uma intenção de Deus em nos transformar na sua própria imagem. Toda a obra de Deus em nossa vida é na direção de alcançar ao nosso legítimo duplo: Jesus Cristo.
Quanto ao problema da singularidade da existência, ou a busca de ser alguém original, que inventa sua própria história, há na Bíblia certo tipo de imitação que não traduz fraqueza ou desmerecimento, tanto que ela nos estimula a isso: “Sede meus imitadores como também eu sou de Cristo." (I Coríntios 11:1)
Análise comparada entre as personagens de Budapeste e Pierre Menard, autor do Quixote.
Budapeste, romance de Chico Buarque de Holanda trata da vida de um gost-writer, José Costa, narrador personagem e também protagonista. A história relata as idas e vindas do Rio de Janeiro à Budapeste e vice versa, assim como a indecisão amorosa por parte do protagonista em decidir com qual mulher ficará, a brasileira, Vanda de pele morena, uma conceituada apresentadora de telejornal ou a bela branca – Kriska da cidade de Budapeste. É essa duplicidade de vidas que o protagonista tem, que vai fazer ele se desenrolar em um novo “eu”. No Rio de janeiro ele é José Costa, sócio de Álvaro na Agencia Costa & Cunha, casado com Vanda e os dois possuem um filho, Joaquinzinho. Quando vai a Budapeste passa a ser Zosoze Kósta: “passei a me conhecer por Zsoze Kósta em Budapeste” (BUARQUE, 2003, pp.62-63). Inicia um romance com uma contadora de histórias, Kriska, que passa a lhe ensinar a língua magiar. Considerando tais mudanças de Costa em Budapeste, é possível fazer uma direta ligação entre o personagem Gregor Samsa de “A Metamorfose” de Franz Kafka, onde certo dia o personagem acorda e se vê transformado em um inseto. “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranqüilos encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso...” (KAFKA, 2003, P-13).
Nessa esteira, o trecho do livro Budapeste, em que o narrador, em busca de ter inspiração para escrever a autobiografia de Kaspar Krabbe, se transforma no alemão também corrobora essa idéia de mutação:
Pegava a esmo uma das vinte fitas cassete que o alemão deixara gravadas, ouvia vagamente sua voz, pousava os dedos no teclado, e eu era um homem louro e cor-de-rosa sete anos atrás, quando zarpei de Hamburgo e adentrei a baia de Guanabara. (BUARQUE, 2003, p. 29)
As duas obras apresentam alguns pontos em comum no que se refere às personagens principais. Costa assim como Gregor, vezes muda completamente, transformando-se em um ser totalmente diferente de acordo com o lugar em que se encontra. No Brasil é um, mas na Hungria é outro, totalmente diferente, metamorfoseado. Tanto na obra “A Metamorfose”, quanto “Budapeste”, mostra claramente através dos protagonistas que nós, seres humanos, estamos cotidianamente vulneráveis à metamorfoses, transformações momentâneas que algumas vezes são tão fortes e bizarras, que nem nós próprios conhecemos esse outro “eu” que se manifesta e isso nada mais é do que o duplo. Afinal, somos seres que dentro de si carrega várias outras personalidades, vários “eus”.
No Brasil, José Costa vive um relacionamento confuso com Vanda, os dois pertencem a mundos completamente distintos, pelo fato da personagem Vanda ser uma apresentadora de um telejornal, ela só ouve o que deseja e também só apresenta notícias que interessam a mídia televisiva, diferente de Costa que transita, principalmente, pelo domínio do discurso literário, não-referencial.
No que se refere ao duplo, a obra nos mostra que o relacionamento do narrador com Vanda, aponta diretamente para a compreensão da duplicação do sujeito da enunciação no que se refere a sua identidade autoral fraturada, uma vez que em nossa leitura estamos enfatizando a voz de Vanda como aquela que representa a mídia, esse outro espelho que institui em relação a cultura letrada.
O narrador protagonista não se decide por quais atributos femininos se sente mais atraído:
Kriska se despiu inesperadamente e eu nunca tinha visto corpo tão branco em minha vida. Era tão branca toda sua pele que eu não saberia como pegá-la, onde instalar minhas mãos.” (BUARQUE, 2003, p.45).
Dava-me grande prazer ver a naturalidade com que a Vanda se despia a blusa, sem sutiã por baixo, depois desabotoava a saia, ficando só de calcinha, e contarei que a temporada longe do mar não lhe alterara o tom da pele.” (BUARQUE, 2003, p. 101).
Os dois trechos citados mostram as características das duas mulheres, sendo uma de pele clara, típica das mulheres européias e a outra, uma morena de corpo bronzeado próprio das brasileiras. Os dois exemplos acima comprovam a dupla preferência do personagem José Costa.
Seguindo a mesma vertente da duplicidade, Jorge Luís Borges (1899-1986) nos apresenta um narrador personagem, Menard, autor de um livro cuja imagem é refletida perfeitamente num segundo livro. Na obra “Pierre Menard, autor do Quixote”, do século XX, há a pretensão de escrever, ou copilar a obra de um autor do século XVII, “Dom Quixote” de Miguel Cervantes.
Não queria compor outro Quixote – o que é fácil – mas o Quixote... não se propunha copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir algumas páginas que coincidissem – palavra por palavra e em linha por linha – com as de Miguel Cervantes.” (BORGES, 1998,P-493).
Apesar de idêntica, a obra de Cervantes (1547-1616) é em essência distinta desta, pois segundo Borges, foi escrita não por Cervantes, mas por Pierre Menard. Veja que o ato de escrever o outro se passando pelo outro, Pierre Menard escrevendo Dom Quixote de Cervantes, se situa coerentemente no que chamamos de duplo. Na obra Budapeste, Chico Buarque, nos apresenta um gost-writer (escritor fantasma), que escreve de forma anônima, obras para que outras pessoas assinem; como na passagem em que José Costa escreve o Ginográfo para o alemão Kaspar Krabbe, o qual é assumido como o verdadeiro autor do livro. Portanto, pode-se dizer que em Budapeste, José Costa se aproxima de Pierre Menard, pela atitude de se assumir como outro, ambientado em sua própria imaginação criativa.
Em outro trecho do livro em que a personagem Álvaro terceiriza algumas tarefas de José Costa, contratando para “Cunha & Costa”, agência cultural, um jovem redator que, na verdade seria um dos duplos do próprio narrador José Costa: “Álvaro adestrava o rapaz para escrever não à maneira dos outros, mas à minha maneira de escrever pelos outros...” (BUARQUE, 2003, P-23). Esta citação reflete claramente a experiência do conhecimento do outro, pois segundo o estudioso Antonio Cândido, o romance reorganiza a maneira pela qual realizamos esta experiência que difere da vida empírica, onde o conhecimento do outro se dá através dos sensores, principalmente a visão.
O próprio narrador deixa transparecer no texto, que esse rapaz, o redator e os seus outros redatores, que mais tarde somariam sete, são os duplos do duplo de José Costa. “... da mesma forma que o autor se transverte em mil personagens para poder ser mil vezes ele mesmo.” (BUARQUE, 2003, P-23)
A imagem do espelho, mostrada em várias passagens do texto, como: “Para não me aborrecer decidi ignorar os textos do rapaz, e me sentava de costas para as costas dele, porque é impossível criar com um estranho fitando a nossa cara.” ( BUARQUE, 2003, P-23), remete ao duplo e nos faz perceber que apesar de sabermos que a imagem refletida no espelho é a nossa própria imagem, nós não a conhecemos. Esta idéia faz alusão ao fato vivido pelo autor, pois ele não sabe ou não aceita que exista “outro eu”, dentro de si. Este sentimento ratifica a idéia exposta anteriormente, ou seja, os sete rapazes redatores são, na verdade, duplos de seu duplo e, para José Costa, era agonizante saber que existia alguém que escrevia tão parecido ou igual a ele.
Era aflitivo, era como ter um interlocutor que não parasse de tirar palavras da minha boca, era uma agonia. Era ter um plagiário que me antecedesse, ter um espião dentro do crânio, um vazamento na imaginação.” ( BUARQUE, 2003, P-24)
Ainda falando de espelho, na leitura do romance “Budapeste”, José Costa só consegue chegar à verdade através de sua própria leitura, onde ele verifica que aquele “eu” espelhado através da linguagem, poderia ser ele próprio: “...agora eu lia o livro ao mesmo tempo que o livro acontecia.”(BUARQUE, 2003, p-174)
Luis Borges, contraditoriamente a Chico Buarque, faz uma caminhada para longe da busca sôfrega para a singularidade da existência, demonstrando que mesmo quando se diz algo que alguém já disse não se diz a mesma coisa. Lembrando o fato, talvez, de que a única diferença entre uma coisa e a mesma coisa, é a maneira como cada um de nós olha para ela. O protagonista, Menard, resolve escrever o Quixote, obra de séculos atrás do espanhol Cervantes. Após escrita a obra, agora dita por Menard e não por Cervantes “1º autor da obra”, fica claro que embora o texto fosse integralmente parecido, já não era o mesmo em sua profundidade, altura e extensão, simplesmente porque agora estava sendo escrito por outra pessoa, em outra época, com um novo contexto que acarreta em uma série de signos diferentes com significados também distintos e atuais. Tânia Franco Carvalhal já ressaltava a distinção de escrever em uma época e escrever em outra:
(...) os textos são na aparência iguais, mas a face invisível deles, a que se revela pelo deslocamento temporal efetuado (o texto de Cervantes reaparece idêntico três séculos depois), modifica integralmente o significado. A re-produção de Menard logra outros sentidos interpretativos, graças ao novo contexto em que ela é relançada.” (CARVALHAL, 1986, p. 67)
Talvez aqui fosse preciso relembrar a lógica formal de Aristóteles, onde na colocação de duas premissas e uma conclusão pode se estabelecer princípios para a compreensão dos fatos, mas onde de fato, o “argumento de autoridade”, pode influenciar completamente nossa percepção sobre algo que este ou aquele está afirmando sobre qualquer fenômeno verdade ou fato da vida. Deve ser por isso que artigos científicos tornam-se mais relevantes quando aquilo que se diz, concorda com que aquela autoridade já disse.
Toda originalidade sofre, portanto, a contingência da possibilidade da não aceitação enquanto não se cristalizar a partir do apoio de um duplo. Sem dúvida alguma, esta é uma caminhada às avessas, onde o deslocamento rumo à singularidade existencial como meio de construir a identidade, não deve recusar a convivência e até a apropriação do que já foi dito ou escrito, porque isso não nos afastaria de nossa identidade, mas revitalizaria algo que, como no caso do Quixote de Cervantes, tivesse ficado na obscuridade, com aparência de inutilidade ou mesmo oportunizar as novas idéias, a terra fértil para poderem germinar, brotar e, enfim, tornarem-se árvores grandes, frondosas e frutíferas.
Considerações finais.
Grande parte das apreensões que temos é fruto não de percepções pessoais, mas daquilo que alguém nos falou ou nos fez ver. Olhamos a realidade não apenas por nossos olhos, mas pelos olhos de outros que refletem como espelhos suas impressões e essas imagens vão se consolidando e formando um mosaico em nossa mente. Algumas perguntas evocam dúvidas: no espelho a imagem refletida foi adulterada? Era imparcial? Era mentirosa ou fraudulenta? Era completa e justa?
Quando reproduzimos para outros, como espelho, a imagem que foi impressa na gente, tornamo-nos duplos e criamos nos interlocutores a partir da transferência dessas imagens, duplos e duplos.
Budapeste é uma viagem extraordinária para a compreensão destas relações. José Costa, interpretado pelo Sr. (ex-marido de Kriska) vê-se repentinamente desnudado. A agonia íntima de José Costa é que não fora ele pessoalmente quem refletiu a imagem da própria vida ao Sr. , estas imagens procederam de outros espelhos.
Luis Borges, com seu personagem Menard argumenta que, uma mesma imagem refletida por espelhos diferentes produzirão efeitos, sensações, interpretações e conclusões diferentes nem tanto pela imagem, mas pelo espelho que a reproduz.
Mas, o que resta após essa extensa pesquisa é um senso profundo de responsabilidade de nossa própria condição como espelhos, pois, educadores são espelhos.
Para além dos espelhos há as imagens e sobre estas bem poderia ficar adesivada como aviso aos espelhos uma frase célebre de Neidson Rodrigues: “– Se você não me entende, não me interprete!”.

REFERÊNCIAS:
BORGES, Jorge Luis, 1899-1986. Obras completas de Jorge Luis Borges, volume 1 / Jorge Luis Borges. – São Paulo: Globo, 2001.
BUARQUE, Chico, 1994 – Budapeste: Chico Buarque – São Paulo: Companhia das letras, 2003.
CARVALHAU, Tania Franco. Literatura comparada. São Paulo: Ática, 1986
KAFKA, Franz. A metamorfose. Companhia das Letras, 2ª Ed: São Paulo, 2003.

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